Reproduzimos na sequência um extrato do ensaio, publicado no número 3807 da revista La Civiltà Cattolica, com a data de 07 de fevereiro de 2009 (veja a notícia anterior). O autor do artigo é Jean-Pierre Sonnet, jesuíta, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma.
“A origem das espécies”. Gênesis 1 e a vocação científica do homem, por Jean-Pierre Sonnet
Quando se fala das origens, para os cristãos de nosso tempo o desafio é o de viver uma dupla cidadania: uma fidelidade inteligente ao ensino de Gênesis 1 e uma abertura atenta às propostas da pesquisa científica. [...] Contudo, hoje eles devem afinar essa dupla lealdade, num tempo em que alguns se divertem jogando as noções da criação uma contra a outra, sob a forma de ideologias – criacionismo e evolucionismo – reciprocamente excludentes.Para os defensores do evolucionismo, voltar ao poema inicial do Gênesis significa uma regressão a uma forma de obscurantismo incompatível com a racionalidade da idade moderna. Neste ensaio buscaremos demonstrar que a referência aos primeiros capítulos do Gênesis não implica em absoluto uma renúncia da inteligência. [...] Uma racionalidade luminosa atravessa estes textos, capazes de falar a cada homem razoável, e em particular ao homem de ciência contemporâneo. [...]
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Gênesis 1 poderia ter como subtítulo “Process and Reality”: o ato criador foi distribuído em momentos sucessivos, na sequência de uma semana. [...] Longe de ser uma explosão de potência cega, a criação – segundo o poema narrativo de Gênesis 1 – é uma ação que se desenvolve progressivamente, numa sequência ordenada, na qual se enuncia um desenho.A progressão – como mostrou Paul Beauchamp no ensaio “Création et séparation” – é acima de tudo a de sucessivas separações, expressas desde o início com a raiz verbal “badal”: “E Deus separou a luz das trevas” (1, 4; cf. também 1, 6.7.14.18). A partir do terceiro dia, uma vez constituídos os macro-elementos do cosmos, não aparece mais o verbo da separação (exceto em 1, 14.18, a propósito dos “grandes luzeiros”), substituído por outra expressão: “segundo a própria espécie”. Tal fórmula, repetida dez vezes, se refere primeiro às espécies vegetais (1, 11-12) e depois aos animais (1, 21.24-25). Desde a origem, Deus salva do informe e do indeterminado, constituindo progressivamente um mundo diferenciado.
Em sua sequência, os dias da criação amplificam a sucessão já ligada à palavra. Desde o primeiro dia os atos divinos, por quanto imediatos, se manifestam de modo discursivo. [...] A sucessão é sem dúvida uma lei da linguagem e, em particular, do discurso narrativo, que pode dizer as coisas somente uma depois da outra. Num reflexo de “realismo” teológico, o relato de Gênesis 1 se preocupa em fazer remontar essa sucessão à própria liberdade divina. [...]
Seguindo passo a passo as iniciativas divinas, o narrador se preocupa em acentuar o que o desígnio divino tem construído e finalizado. O ato criador, em sua sequência, não é um processo aleatório ou uma extravagante dispersão de energia. O gesto divino – afirma o narrador – se desdobra entre “princípio” (1, 1) e “cumprimento” (ver o verbo “concluir’ em 2, 1), e numa série (“primeiro dia”, “segundo dia”, etc.) que aparece progressivamente completada, a dos seis dias mais um. Enfim, no final do relato descobrimos que Deus conclui precisamente o que havia começado a criar na origem, “o céu e a terra” (2, 1; cf. 1, 1). Em outros termos, o processo se insere na inteligência de um plano que preside cada um de seus movimentos.
Paradoxalmente, o domínio divino no Gênesis 1 tem sua mais bela demonstração nas pausas que dão ritmo à sequência criadora. De fato, Deus une às suas iniciativas criadoras um sinal de pausa e de maravilha: “Deus vê que a luz era coisa boa” (1, 4). [...] Em cada uma destas pausas Deus revela que não é em hipótese alguma escravo de sua própria força; pelo contrário, esta é a máxima experiência de sua liberdade, como se descobre no sétimo dia, quando Deus “cessou de todo o trabalho” (“wayysbot”, da raiz “sabat”) e consagra um dia inteiro a esta pausa (2, 2). Em vez de ocupar o sétimo dia da série para “esgotar” a própria potência criadora e encher todo o mundo, o Deus bíblico põe um limite ao gesto criador, “dominando seu domínio”, para dizê-lo com Salomão: “Tu, Dono de tua força, julgas com moderação e nos julgas com muita indulgência” (Sb 12, 18). Nesta pausa Deus fixa sua recusa em encher tudo e, correlativamente, sua vontade de abrir um espaço de autonomia ao universo, em particular à humanidade. [...]
Por fim, este processo – com sua disposição – revela a finalidade que lhe subjaz: os elementos progressivamente constituídos desenham uma curva, que vai do “bom” do versículo 4 ao “muito bom” do versículo 31. O eixo da palavra é o que melhor revela tal curva do espaço criado. Se desde a criação da luz Deus fala, e se fala de todos os elementos que cria – “Haja luz... Acumulem-se as águas... Haja luzeiros no firmamento...” –, Ele fala em segunda pessoa somente aos seres vivos, a partir do quinto dia: “Sede fecundos e multiplicai-vos, e enchei as águas dos mares, e as aves cresçam na terra”. Até então as criaturas não eram interpeladas, mas, no máximo, eram destinatárias de ordens em terceira pessoa. A partir deste momento Deus fala a criaturas vivas, capazes de entendê-lo.
Mas é no sexto dia, com a criação do homem, que a pessoa gramatical faltante – a primeira pessoa – faz seu aparecimento na boca de Deus. Primeira pessoa do plural: “Façamos o homem” (versículo 26), e depois no singular: “Eu vos dou toda planta como vosso alimento” (v. 29). E é com o aparecimento do casal humano que a palavra divina se dá um interlocutor explícito: “Deus lhes disse” (v. 28). Deus se dirige – e na primeira pessoa – ao ser que será também o ser de linguagem, “o ser à imagem”, destinado ao domínio brando da palavra.
A sequência era, pois, em cada uma de suas partes, ordenada ao próprio fim. E a forma narrativa, em particular em seu modo de representar as variações na palavra divina, tem sido o veículo eficaz de tal fim.
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Gênesis 1 poderia ter como subtítulo “A origem das espécies”, dado a vinculação do plano divino com a diversidade de espécies. Certamente, aqui não se trata do processo de evolução das espécies. Se Gênesis 1 evoca um processo, este deve ser buscado na sequência dos dias, ao longo dos quais Deus faz surgir as espécies vegetais, as espécies animais da água e do ar e as da terra firme. Os diversos biótipos são respeitados (água, firmamento, terra), mas a participação divina não se dirige a “classes” de animais, mas vai diretamente às espécies particulares: os vegetais e os animais aparecem todos “segundo a própria espécie” (vv. 11-12, 21.24-25). E estas espécies aparecem “tais quais”, ou seja, no estado em que o olhar do homem as encontra desde o v. 28. A flora e a fauna consagradas por Deus na bondade que lhes é própria são as que acompanham a família humana em seu destino. [...]Se as espécies são levadas cada uma à existência com uma intervenção imediata de Deus, são também criadas com autonomia própria. As espécies vegetais surgem providas de seu princípio de reprodução: “Produza a terra vegetação: ervas que dão sementes, e árvores frutíferas que, segundo a sua espécie, produzam frutos contendo em si a sua semente” (1, 11). Em relação aos representantes das espécies animais, lhes disseram: “Sede fecundos e multiplicai-vos” (1, 22). Se a heteronomia está presente em cada instante do poema narrativo de Gênesis 1 – e já que as criaturas têm seu segredo neste Outro que as faz surgir –, a autonomia das espécies na duração também é manifesta: Deus cria os seres vivos confiando-lhes a sua autonomia reprodutiva, o que os fará “iguais” de geração em geração.
Há um outro texto do Pentateuco, o capítulo 11 do Levítico, em que se torna plenamente evidente o argumento do “discurso sobre as espécies” de Gênesis 1. [...] O tratado sobre os animais puros e impuros que se lê no Levítico 11 constitui, com efeito, uma posta em ato sofisticada dos dados e das distinções introduzidas no Gênesis 1. Uma nova luz foi trazida sobre Levítico 11 com os trabalhos de Mary Douglas, antropóloga inglesa, que publicou, em 1966, Pureza e Perigo [Lisboa: Edições 70, 1991]. Já em 1962, Claude Lévi-Strauss em seu O Pensamento Selvagem [8. ed. Campinas, SP: Papirus, 2007] havia [...] demonstrado através da análise de vários mitos e de sua estrutura que o pensamento primitivo chamado “selvagem” era guiado por uma lógica rigorosa, classificadora. Em Pureza e Perigo, Douglas demonstra que o Levítico 11 ilustra perfeitamente essa lógica. [...] Deus declarou a bondade de todas as criaturas animais, inclusive os monstros marinhos, consagrando sua divisão por espécies (Gn 1, 21-25). Por que então o Levítico 11 introduz distinções suplementares entre animais puros e impuros? As diferenças introduzidas no Levítico 11 valem unicamente para o povo que foi “distinguido”: são de ordem prática e se referem ao regime alimentar dos israelitas e à sua prática sacrificial; referem-se a um povo chamado a entrar na santidade de Deus – e em sua “diferença” – entrando num mundo mais rico de diferenças. Uma passagem do Levítico resume essa vocação singular: “Mas a vós digo: Eu sou Javé, vosso Deus, que vos separou destes povos. Haveis de fazer a separação entre animais puros e impuros, e entre aves impuras e puras; para que não vos façais abomináveis, nem com animais nem com aves, nem com o que se arrasta pelo solo; porque vos separei tudo isso como impuro. Sede, pois, santos para mim, porque eu, Javé, sou santo, e vos separei dentre os povos, para que sejais meus” (20, 24-26). [...] Unida às outras distinções introduzidas pelo Levítico, a distinção dos animais limpos e imundos está entre as que colocam os filhos de Israel do lado de [...] um respeito mais atento, aos outros e a si mesmos, do primeiro dom de Deus que é a vida. Uma vez mais, a visão bíblica não sustenta uma religiosidade irracional, mas se revela ligada a uma sábia articulação do mundo, respeitosa das distinções internas da realidade e da finalidade indicada por elas.
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Gênesis 1 poderia, finalmente, ter o subtítulo dado por Karl Popper ao seu último livro: “Questões relacionadas ao conhecimento da natureza”. Adão prolonga a obra criadora da separação das espécies. Desse modo, exercita, à imagem de Deus, o “domínio brando” do mundo que lhe é confiado (1, 28).Um texto bíblico do Livro dos Reis afirma, além disso, que ele exercita nisto uma função real e, por assim dizer, “científica”. O elogio da sabedoria de Salomão termina com estes versículos: “A sabedoria de Salomão foi maior que a de todos os filhos do Oriente e maior que toda a sabedoria do Egito. [...] Ele compôs três mil provérbios e mil e cinco cânticos. Falou sobre plantas, desde o cedro do Líbano até o hissopo que cresce na parede. Falou também sobre animais, aves, répteis e peixes” (1Rs 5, 10-13). No estado-jardim que são a Judeia e Israel (cf. 1Rs 5, 5), Salomão, cheio da sabedoria que recebeu, prolonga o gesto de Adão que “deu nome a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras” (Gn 2, 20) e dá início também ao governo do mundo com a linguagem.
Depois de Herder e Heidegger, não faltaram interpretações que viram nos nomes que Adão dá aos animais o nascimento da vocação poética do homem, a de “habitar poeticamente esta terra” (Hölderlin). Para dizer a verdade, o transfundo cultural da dupla cena (em Gênesis 2 e em 1Rs 5) convida a ver Adão e Salomão representados como poetas e como homens de ciência. A sabedoria enciclopédica de Salomão no citado retrato de 1Rs 5, 12-13 é próxima do saber classificador e da “ciências das listas” dos habitantes da Mesopotâmia, dos quais derivam também os inventores do livro dos Provérbios e dos códices de leis bíblicas.
Dessa “ciência das listas”, elaborada entre o Eufrates e o Tigre, René Labat escreve: “Mesmo que se não estava dirigida à universalidade, ela se encontra na prática estendida a todas as ordens de conhecimento: ciência da natureza nas listas de minerais, de plantas e de animais; ciência das técnicas nas listas de utensílios, de vestidos, de construções, de alimentos e bebidas; ciências do universo nas listas dos deuses, das estrelas dos povos ou bairros, de rios e de montanhas; enfim, ciências do homem nas listas das características físicas, das partes do corpo, dos ofícios e das classes sociais”.
Essa classificação dos fenômenos do real se organiza em particular a partir de seus nomes. Na Bíblia há um eco da atividade criadora de Deus que cria as coisas dando a elas um nome. “O círculo dos conhecimentos de Salomão, zoológico e botânico, é outro jardim de Adão”, escreve Paul Beauchamp. Adão e Salomão testemunham ambos – um nas origens e o outro na “modernidade” da história – a vocação do homem para habitar “cientificamente” a terra que Deus lhes confiou.
Labat em sua nomenclatura menciona a elaboração das “listas dos deuses”. Mas isto é uma tarefa que não cabe mais ao homem bíblico, cujo único Deus se revela irredutível a fenômenos do mundo. É necessário, com efeito, colocar em relevo como o monoteísmo bíblico transformou a relação do “saber” do homem com o mundo que o circunda: no mundo bíblico a “ciência das listas” tem um novo sentido. Os politeísmos do antigo Oriente Próximo, egípcios, mesopotâmicos e cananeus [...] estavam estreitamente ligados a ambientes cósmicos: o céu, a chuva, as constelações, o ar, o vento, as águas doces. Isto já não é pensável no contexto bíblico: se Deus penetra com seu olhar e seu cuidado o mundo que criou, até nos pontos mais inacessíveis (cf. Jó 38-39), contudo, está “separado” em sua absoluta transcendência (cf. Is 40, 25; 46, 5; 66, 1-2).
As sociedades religiosas do antigo Oriente Próximo se caracterizam, além disso, por um fundo obscuro no qual reinam demônios e forças maléficas. O pensamento bíblico reorientou este dado notavelmente. [...] Liberada das imanências divinas e demoníacas, a terra do homem bíblico lhe é entregue por completo: “Os céus pertencem a Javé, mas a terra ele a deu para os homens” (Salmo 115, 16). Esta lhe é confiada em toda a sua extensão, céu, mar e terra, como canta o Salmo 8, com o dever de investigação que segue: “A glória de Deus é ocultar as coisas, e a glória dos reis é pesquisá-las” (Pr 25, 2). Essa tarefa real do homem bíblico recebe a forma mais “moderna”, quase secularizada, na pesquisa de Salomão, como está representada no livro do Eclesiastes: “Eu resolvi pesquisar e investigar com sabedoria tudo o que acontece debaixo do céu” (Ecl 1, 13). Certamente, tal empresa está distante das ciências modernas: para se tornarem operativas, estas deverão cruzar outros umbrais de racionalidade, começando pela conceptualidade grega. É verdade, entretanto, que o pensamento bíblico da entrega da criação ao saber e ao poder do homem constitui uma das condições da emancipação do saber científico.
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Gênesis 1 é, pois, a seu modo, uma manifestação da inteligibilidade do mundo [...] Este capítulo e os seguintes no Gênesis não afirmam de fato uma forma de competência entre a ciência divina e a do homem. O acesso do homem ao saber da linguagem não é uma prerrogativa roubada da divindade, como um fogo prometeico, não obstante as falsas promessas da serpente em Gn 3, 1-5. A vocação “científica” do homem é, ao contrário, enunciada nos momentos de presença de Deus no homem, como discurso dirigido por Deus a Adão em Gênesis 1, ou como proximidade de Deus ao homem no jardim em Gênesis 2, ou como a experiência mística em 1Rs 3, onde Salomão pede a Deus sabedoria, que em particular tomará a forma de seu governo do mundo através da palavra. Este saber não está livre de cair em desvios, mas que procede, sobretudo, do “ser à imagem”, como a tarefa real confiada por Deus a Adão. O Salmo 8 coloca as coisas na justa perspectiva, quando celebra o senhorio de Deus celebrando o do homem: “Tu o fizeste pouco menos do que um deus, e o coroas de glória e esplendor. Tu o fazes reinar sobre as obras de tuas mãos, tudo submeteste a seus pés”.